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Carnaval de rua / Foto: reprodução
Carnval de rua / Foto: reprodução

Ócio, euforia, movimento, uma quase liberdade de expressão linguística e corporal. Rios coloridos de pessoas desaguando em nada. Um país paralisado e entorpecido pelo fenômeno histriônico coletivo do carnaval, evento prolongado que fortalece o estereótipo da malemolência nacional. Ano a ano, no gozo da crise ou da bonança, irrompem blocos de foliões fantasiados com máscaras dos heróis e anti-heróis da hora que, a pretexto de “via de escape” cultural, antecipam o carnaval e simulam integração social.

Em que pesem os conflitos de classe, os preconceitos modulados pela globalização e a valorização das pautas identitárias, a noção de identidade do brasileiro persiste amalgamada por carnaval e futebol. Somos legatários de um atestado de multiculturalismo que revigora a crença na nossa originalidade cultural, étnica e social, ainda que repleta de incongruências.

Somos o “homem cordial”, o mestiço irreverente, generoso, hospitaleiro e risonho. No âmago, ainda acreditamos ser herdeiros de uma carta de alforria da mesmice, do formalismo e da austeridade presentes em outras culturas. No âmago, bem sabemos que essa “cordialidade” implica sermos menos afáveis e caridosos, macunaímas, apreciadores do privado e malandros miscigenados. Darcy Ribeiro nos convenceu que somos também violentos, injustos, racistas, preconceituosos, a mão possessa que supliciou pretos e índios: “A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista”.

No carnaval, os píncaros da indulgência com as próprias desgraças são atingidos. Dançamos infortúnios, desditas, mediocridades intelectuais, as péssimas escolhas na vida privada e na pública. Quem não aprecia o autoengano? Sobretudo, quando vem mascarado em extravasamento de desejos e flertes com Baco ou Dionísio, em fantasias e ritmos arrebatadores.

Nem todos sabem que a origem do nosso carnaval é europeia e data da colonização, sendo herança do entrudo português (“começo” das solenidades da Quaresma) e das mascaradas italianas. Os elementos africanos foram introduzidos apenas no início do século XX, mas foram definitivos para deixar seus traços distintivos de originalidade.

O carnaval, com seus primeiros foliões, era uma festa violenta e marcada por um clima de zombaria pública. Os escravos arremessavam, uns contra os outros, ovos, farinha, restos de comida, ao passo que as famílias abastadas se divertiam derramando baldes de água suja nos passantes. Com a repressão aos entrudos, meados do século XIX, a elite passou a criar os bailes em clubes e a tomar as ruas. Mas as manifestações populares se adaptaram e persistiram com seus festejos, introduzindo procissões, ranchos e cordões, bisnagas precursoras dos lança-perfumes, marchinhas de carnaval.

Finda a “maior festa do mundo”, o auge da confraternização de raças e classes, a sensação de integração e as máscaras da liberdade, da igualdade e da confraternização das culturas e dos descendentes e senhores de escravos deverão cair. Mesmo que ao som de um axé baiano, um frevo pernambucano ou samba carioca. É catarse. A grande hipocrisia seguirá o rumo corriqueiro de mãos dadas com o riso e a mentalidade arcaica. A realidade volta a emergir, desencorajando a exuberância do autoengano e recrudescendo os preconceitos. Que fiquemos atentos e lutemos para transformar essa realidade.

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