A vitória de Donald Trump encontra uma América Latina prostrada, dividida e silenciosa. Mantendo-se fiel ao perfil de baixa prioridade estratégica para a grande potência do Norte, a região já não se projeta internacionalmente como um coletivo com voz política própria e diferenciada. Trata-se de uma zona geográfica de poucas palavras, de peso decrescente na economia mundial, cobiçada por interesses extrarregionais em razão de suas riquezas minerais, de seu lugar como pulmão verde de um planeta que respira mal e de sua sistemática capacidade de oferta de delito organizado.
Independentemente de sua condição periférica, a região sofrerá o impacto do resultado das urnas americanas, particularmente com referência a três temas: questão migratória, democracia e geopolítica mundial.
Com certa ironia, a região deu seu aporte ao mote Faça a América Grande Outra Vez (“Make America Great Again”), slogan que também vem sendo subentendido como Faça a América Branca Outra Vez. Durante toda a sua campanha, o republicano mencionou o tema migratório de forma entrelaçada com os problemas causados pela porosidade em vários pontos dos 3,2 mil quilômetros de fronteira com o México.
De fato, trata-se de uma contribuição pelo avesso, já que ela se dá a partir de uma agenda negativa, a qual não só foi de enorme serventia para Trump como atuou como um estímulo de sentimentos que frequentam a agenda do ódio das massas que o apoiam. A menção constante do México e de seus migrantes como os grandes responsáveis pela entrada do crime e da violência no país passou a legitimar sentimentos de xenofobia, racismo e agressividade.
A proposta do presidente eleito de uma maciça deportação (em 2022, 45% dos 11,3 milhões de imigrantes em situação irregular nos EUA eram mexicanos) seria uma “bukelização” das práticas migratórias do novo governo, seguindo o exemplo de crueldade de Nayib Bukele no tratamento da população carcerária em El Salvador. O sentido racista imbuído na proposta de Trump também mostra seu parentesco com programas de limpeza étnica bem conhecidos ao longo da história do século 20 na Europa e atualmente praticados na Faixa de Gaza pelo governo de Israel.
Democracia como tema secundário
O segundo tema, da democracia, ganhou um lugar privilegiado nos discursos de Kamala Harris. A inclusão desse ponto na agenda democrata fez eco em alguns países da América Latina, com menção especial ao Brasil. A articulação dos grupos de extrema direita nas redes sociais tornou-se especialmente veloz na região. O calendário eleitoral na década recente deu asas à regionalização de uma nova extrema direita com lideranças que atuam dentro e fora das instituições representativas, junto e dentro de organizações religiosas evangélicas, apoiadas por setores jovens de diversos segmentos sociais cativados pelo ideário libertário.
Depois do período 2019-2022 do governo de Jair Bolsonaro, a chegada de Javier Milei ao poder na Argentina em 2023 deu continuidade a essa tendência. De forma inusitada, o governo Lula se posicionou frente à disputa eleitoral a favor da candidata democrata. O resultado das urnas americanas acabou presenteando as forças opositoras no Brasil com uma vitória simbólica. A retomada por Brasília de uma linha de atuação pragmática em seu bilateralismo com Washington, com destaque às agendas positivas em campos econômico-comerciais, poderá atenuar esse reflexo, mas não impedirá o fortalecimento dos laços políticos entre trumpistas e bolsonaristas, especialmente com a mira nas eleições de 2026. Espera-se, portanto, uma via dupla de relacionamento bilateral nos próximos anos.
Geopolítica e Venezuela como ponto de contato
O terceiro ponto de impacto refere-se à geopolítica mundial e ao relacionamento de Trump com a região. O ponto de intersecção entre ambos deverá ocorrer em relação à Venezuela, em uma mistura de reedição da Doutrina Monroe e do uso de métodos típicos de uma Guerra Fria 2.0. Nesse caso, uma estratégia com três modos de atuação possivelmente complementares se aplicaria: coerção, com uma robusta aplicação de sanções econômicas; transação, envolvendo um acerto com a Rússia sobre a Ucrânia que incluiria a retirada de mãos da Venezuela; e intervenção, instrumentalizada pelo Comando Sul e apoiada pela Guiana.
Retomando o início desta análise, espera-se que a América Latina mantenha sua posição de “nada a declarar” diante desses cenários. Na América do Sul, o pragmatismo e a preservação dos vínculos com a China compram o silêncio.
Monica Hirst — Professora da Universidade Torquato di Tella (Buenos Aires) e pesquisadora-colaboradora do IESP-UERJ; autora de livros sobre a relação EUA-Brasil
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