Vários municípios brasileiros, entre eles Bodó, no Rio Grande do Norte, e Vitória da Conquista, na Bahia — decidiram criar suas próprias loterias municipais como forma de arrecadar recursos para áreas como saúde, cultura e assistência social. As iniciativas, no entanto, vêm sendo questionadas por juristas e órgãos federais, que apontam indícios de inconstitucionalidade.
Em 2024, a Prefeitura de Bodó sancionou uma lei criando a “LOTSERIDÓ”, uma loteria municipal com operação em meio virtual. O município abriu edital para credenciamento de empresas interessadas em explorar o serviço, exigindo uma outorga de R$ 5 mil e um repasse mensal de 2% da receita.
De acordo com a prefeitura, a arrecadação seria revertida para projetos sociais e investimentos locais. Segundo a imprensa potiguar, Bodó arrecadou cerca de R$ 8,3 milhões em apenas 10 meses de funcionamento da loteria.
O sucesso financeiro, porém, chamou atenção do Ministério da Fazenda, que notificou o município para suspender o credenciamento de apostas. O órgão federal argumenta que apenas a União, os estados e o Distrito Federal têm competência legal para explorar apostas de quota fixa, conforme previsto na Lei Federal nº 14.790/2023.
“A legislação vigente não exige outorga federal para as empresas atuarem dentro dos limites do município de Bodó, uma vez que sua operação se restringe ao território municipal. Acrescenta ainda que é inegável depreender que todo o procedimento foi pautado na preocupação em garantir o respeito às normas vigentes e aos princípios do federalismo e da administração pública, essenciais para segurança jurídica e interesse público.”
Vitória da Conquista (BA) segue o mesmo caminho
Inspirada em exemplos como o de Bodó, a Prefeitura de Vitória da Conquista encaminhou à Câmara Municipal, em outubro de 2025, o Projeto de Lei nº 35/2025, que cria o serviço público de loteria municipal “LotoConquista”.
De acordo com o texto, a nova loteria teria como objetivo arrecadar recursos para financiar políticas nas áreas de assistência social, saúde, esporte e cultura. O projeto tramita no Legislativo, mas já desperta críticas de especialistas e alertas jurídicos sobre possível inconstitucionalidade.
Isso porque, segundo a Constituição Federal, o tema “sistemas de consórcios e sorteios” é de competência privativa da União (artigo 22, inciso XX). Embora o Supremo Tribunal Federal (STF) tenha reconhecido, em 2020, que os estados também podem explorar loterias próprias, a decisão não foi estendida aos municípios.
Em nota, a Prefeitura de Vitória da Conquista disse que “o PL que cria a LotoConquista visa não apenas a diversificação das fontes de receita municipal, mas também a destinação prioritária dos recursos arrecadados para áreas essenciais como assistência social, saúde, esporte e cultura.” E ainda: “A proposta contempla a exploração de qualquer modalidade lotérica prevista na legislação federal, ampliando as possibilidades de arrecadação”.
Risco jurídico para as prefeituras
Para o jurista ouvido pela reportagem, leis municipais que criam loterias próprias podem ser formalmente inconstitucionais, por invadirem a esfera legislativa da União e tratarem de assunto que não é de interesse local, conforme o artigo 30 da Constituição. “Os estados têm essa brecha reconhecida pelo Supremo, mas os municípios não. Criar uma loteria municipal pode resultar em anulação judicial e até em responsabilização do gestor”, explica.
Além da questão jurídica, há ainda o problema técnico: por se tratar de apostas online, a abrangência territorial ultrapassa os limites do município, tornando impossível restringir o público apenas aos moradores locais — o que reforça a natureza nacional ou interestadual do serviço.
Situação pode parar na Justiça
Tanto o caso de Bodó quanto o de Vitória da Conquista devem ganhar novos capítulos nos tribunais. O Ministério da Fazenda já notificou Bodó oficialmente, e, na Bahia, o projeto da LotoConquista pode ser alvo de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) se for aprovado pela Câmara e sancionado pelo Executivo.
Brasil à fora
Vários municípios brasileiros que já aprovaram ou estão em processo de aprovar leis para criação de loterias municipais. Aqui vão alguns destaques com links para você consultar:
- São Paulo (SP) — Lei nº 18.172/2024 instituiu serviço público de loteria municipal.
- Guarulhos (SP) — A Câmara aprovou lei que “institui a loteria municipal” permitindo todas as modalidades lotéricas conforme a legislação federal.
- Cabo Frio (RJ) — Projeto de Lei nº 0325/2023 para instituição da “LoteCAF” — loteria municipal.
- Campinas (SP) — A prefeitura “deu mais um passo para a implantação da loteria municipal” conforme notícias recentes.
- Catanduva (SP) — Município relatado como estando entre os que “se juntam a outros municípios que já instituíram suas loterias”.
- Estado do Ceará — Ao menos 12 prefeituras sancionaram leis criando loterias municipais.
- Manaus (AM) e Barueri (SP) — Ambos com projetos ou aprovação recente de loteria municipal.