Há filmes que gritam suas mensagens e outros que sussurram verdades profundas no vazio do silêncio. “Ainda estou aqui” é uma dessas obras raras, onde o drama se desenrola com delicadeza e precisão. O filme do diretor Walter Salles é inspirado no livro homônimo escrito por Marcelo Rubens Paiva, que conta a história real de sua mãe, Eunice Paiva, e explora o impacto do desaparecimento do pai, Rubens Paiva, durante a ditadura militar. Ambas as obras revelam a luta silenciosa de uma mulher para transformar o cotidiano em resistência e a memória em um ato político, enquanto convida o espectador/leitor a refletir sobre o peso do esquecimento e a importância de lembrar a ditadura.
Quando “Ainda estou aqui” foi apresentado no Festival de Veneza, um dos principais eventos ligados à temporada de premiações, o filme rapidamente chamou a atenção. O burburinho nas redes sociais e na imprensa internacional logo o colocou como forte candidato às premiações de 2025, incluindo o Oscar. Quando a obra estreou nos cinemas brasileiros no dia 7 de novembro, não restou dúvidas de que o longa já é vencedor independentemente de premiações. O filme é um fenômeno que, segundo a distribuidora no Brasil, Sony Pictures Brasil, levou mais de 1 milhão de espectadores ao cinema em apenas 11 dias de exibição.
Com uma narrativa sensível e visualmente poética, o filme é menos sobre os acontecimentos históricos e mais sobre as ausências, as dores contidas e a força do amor que resiste mesmo diante da opressão. Walter Salles adota uma abordagem contida e profundamente sensível. Em vez de explorar o espetáculo da violência, ele construiu um retrato humano e íntimo, destacando o impacto emocional do regime autoritário na vida cotidiana de Eunice e seus filhos. A narrativa não busca provocar emoções explosivas, mas aposta no poder do silêncio e dos gestos mínimos.
O filme foi certeiro ao utilizar elementos visuais para fortalecer sua mensagem: um grande exemplo disso foi a casa da família Paiva, com sua iluminação natural e decoração nostálgica, que funcionou como um personagem vivo, gradualmente se transformando em um espaço marcado pela ausência e pela dor. Semelhante a isso, cenas como a despedida silenciosa de Rubens antes de ser levado pelos militares destacou a tragédia de maneira devastadora sem a necessidade de diálogos explicativos.
A atriz Fernanda Torres é um destaque no filme, através de uma atuação marcada por olhares cansados, gestos precisos e uma força silenciosa que transmite tanto a dor quanto a determinação de seu personagem. A ausência de grandes emoções não diminui a intensidade da interpretação, ao contrário, ela a amplifica, sua dor não explode em lágrimas ou gritos, ela se traduz em olhares que carregam grande peso, dando maior realismo ao sofrimento e à resistência de Eunice.
A mãe de Torres, Fernanda Montenegro, tem uma participação emotiva no fim do longa. Sem dizer uma palavra, a atriz de 95 anos comunica com o olhar tudo que Eunice gostaria de falar.
Através de fotografias e vídeos caseiros,o filme destaca a luta e a importância do não esquecer. A obra ressalta como o cinema pode ser um instrumento poderoso para revisitar e preservar essas memórias, conectando o espectador à tragédia pessoal e coletiva de uma época que muitos preferem ignorar.
A obra revela-se mais do que uma história política, ela é um tributo sobre memória, luto e a força do amor em tempos de opressão. Agora é aguardar e torcer para o cinema brasileiro ser merecidamente reconhecido e representado internacionalmente. A lista dos indicados para a 97ª edição do Oscar será divulgada pela Academia no dia 17 de janeiro de 2025.
Mais do que em qualquer outro país, o Brasil se emociona em ver que “Ainda estou aqui” expõe as violações promovidas pela ditadura militar e relembra não só a história da família Paiva, mas também a de muitas pessoas que tiveram suas memórias e vidas furtadas e nunca conseguiram encerrar o vazio imposto pela opressão, que ainda buscam respostas.
Sinopse do filme “Ainda Estou Aqui”
O filme é baseado no livro biográfico do jornalista Marcelo Rubens Paiva, filho caçula de Eunice e Rubens Paiva. Lançado em 2015, o livro conta a história da mãe dele, símbolo da luta contra a ditadura, que viveu até 2018, e morreu aos 86 anos, com Alzheimer. Eunice Paiva criou os cinco filhos e se tornou advogada de direitos humanos e indígenas após a prisão e o desaparecimento do marido, em 1971, durante a ditadura, no Rio de Janeiro.
Em 1996, após sancionada a chamada Lei dos Desaparecidos, foi emitido o atestado de óbito do ex-deputado, ficando assim reconhecida oficialmente a sua morte. O corpo de Rubens Paiva nunca foi encontrado.
AgoraRN