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Em 1873, a elite cafeeira paulista resolveu criar a Sociedade Propagadora da Instrução Popular, uma instituição benemérita e privada para formar mão de obra qualificada para a indústria, que começava a surgir em São Paulo. O Brasil, naquele momento, já tinha deixado de ser colônia e se preparava para a República, mas ainda vivia sob as bases do Império e era escravagista.

Pouco tempo depois de sua fundação, já com o início dos fluxos migratórios para o trabalho nas lavouras de café do Brasil, essa organização passou por uma reforma curricular e começou a oferecer também o ensino de Belas Artes e aulas práticas de caráter profissionalizante como serralheria, marcenaria e carpintaria. E aí adotou um novo nome, pelo qual é conhecida até hoje: Liceu de Artes e Ofícios.

Passados 150 anos de sua criação, o liceu não oferece mais seus cursos profissionalizantes, passando a ser uma escola de segundo grau. Mas os trabalhos que foram desenvolvidos em suas oficinas deixaram marcas pela cidade de São Paulo: das poltronas do Theatro Municipal aos portões de entrada de diversos edifícios da região central, muito do que foi produzido no antigo Liceu se mesclou à história da capital. Um legado que não foi apagado nem pelas chamas do incêndio que atingiu o seu Centro Cultural em 2014.

Neste ano em que celebra os 150 anos de sua fundação, o Liceu decidiu refletir sobre sua história e seu legado por meio de uma exposição retrospectiva, chamada Oficina+ Escola: Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo – Mobiliário Atemporal.

A mostra gratuita fica em cartaz até 17 de fevereiro de 2024 e tem curadoria de Guilherme Wisnik e Fernanda Carvalho e apresenta uma coleção de móveis e de desenhos de mobiliários criados nas oficinas do Liceu, escola por onde passaram grandes nomes da cultura brasileira como Victor Brecheret, John Graz e Adoniran Barbosa.

“No Liceu, a maioria era de europeus, principalmente italianos, que se tornaram tanto os aprendizes nas oficinas como também mestres. Os europeus e italianos já tinham um conhecimento de manufatura muito grande e [isso] foi incorporado fortemente nas oficinas de marcenaria, serralheria e de produção de vidro”, contou Wisnik, em entrevista à Agência Brasil.

A instituição conseguiu unir práticas pedagógicas com saberes manuais, tornando-se referência no mobiliário brasileiro com peças feitas a partir de experiências coletivas derivadas do Arts & Crafts, movimento do artista têxtil William Morris, que valorizava o trabalho manual de artesãos para a indústria.

“O Liceu tem um duplo aspecto fundamental que é ser escola – no sentido de oferecer às classes médias e baixas a instrução como matemática e português e, depois, artes aplicadas e de conhecimentos manuais – e, ao mesmo tempo, criar as oficinas. Essa produção de mobiliários passou a ser vendida no mercado. Houve uma conexão muito interessante entre a escola e a oficina, que é rara no Brasil e [isso] deu identidade para o Liceu”, disse o curador.

Sob a direção do engenheiro e arquiteto Ramos de Azevedo, a instituição começou a comercializar seus produtos, atendendo tanto os palacetes da burguesia quanto importantes obras públicas, confeccionando caixilhos, portões, frisos e até mesmo estátuas monumentais como a de Duque de Caxias, que foi instalada na Praça Princesa Isabel, na capital paulista. Foi o Liceu também que desenvolveu e fabricou o primeiro hidrômetro, um instrumento usado para medir a velocidade ou o escoamento da água, inteiramente nacional.

Todos esses produtos, revelou o curador, eram produzidos geralmente de forma coletiva e anônima. O visitante da exposição poderá notar isso ao observar que não há assinaturas nas obras.

“A principal característica do Liceu é o trabalho anônimo, a ideia de que muito pouco era assinado”, acentuou o curador. “Isso é interessante e importante porque marca uma diferença com o mundo do século XX, que foi se tornando cada vez mais o mundo do fetiche de autor, sobretudo no mercado da arte. Enquanto a arte erudita foi cada vez mais rumando para o lado da individualidade do artista e da ideia do gênio, as artes aplicadas, que são artes menores, tinham um vínculo muito forte com o folclórico e com essa ideia de uma tradição que, muitas vezes, é anônima”, acrescentou.

A mostra, que mistura momentos históricos da instituição com a formação industrial da cidade de São Paulo, é dividida em três eixos. O primeiro deles apresenta o contexto urbanístico e social de São Paulo em 1873, quando a instituição foi fundada pelo advogado e político Carlos Leôncio da Silva Carvalho, com apoio da burguesia da época – cafeicultores, maçons e comerciantes.

“Quando o Liceu foi criado, São Paulo era uma cidade quase rural, muito pouco desenvolvida, com muitas construções ainda de taipa. A fundação do Liceu foi um ato visionário para a cidade porque estava se percebendo que ela iria crescer muito”, opinou o curador.

O segundo núcleo é focado nas atividades para a produção industrial, com início na gestão de Ramos de Azevedo. Aqui, ela mostra como o Liceu incorporou em suas oficinas o método do trabalho coletivo. O núcleo apresenta, por exemplo, uma discussão entre os escritores Mário e Oswald de Andrade sobre se as casas modernistas deveriam ou não ser mobiliadas com móveis no estilo Luiz XVI, um dos estilos mais reproduzidos nas oficinas da instituição à época. Esse segundo núcleo, explicaram os curadores, apresenta o auge do Liceu e também seu período mais eclético, em que havia uma mistura de estilos e valorização de ornamentos e detalhes.

Já o terceiro núcleo expõe peças históricas como o mobiliário Savonarola. Uma parceria longeva da instituição com a Galeria Teo apresenta peças construídas a partir de madeiras nobres, como imbuia e jacarandá, destacando os detalhes da construção em detrimento do ornamento.

Esse núcleo também mostra o Liceu e sua passagem para o moderno. “Quando as vanguardas do século 20 se implantam, elas têm uma visão de que o ornamento é um crime. Você ornamentar uma cadeira ou edifício era uma visão antiga, esteticamente falando e, na prática é um trabalho excessivo que os tempos modernos já não pediam mais. Você aqui produz mais industrialmente, em linha de montagem e produção serial. Para o Liceu, em um primeiro momento, isso foi um trauma porque todo o sucesso estava ligado aos estilos”, explicou o curador.

Durante todo o percurso da mostra, o público poderá ver ainda documentos da época, como folhetos, catálogos de montagem, fichas pessoais dos trabalhadores e desenhos de projeto relacionados às peças modernistas, entre móveis, bronzes e esculturas. Há também vídeos como um em que a professora Ana Belluzzo, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP), fala sobre a história do Liceu.

“Em outro vídeo, mostramos que o trabalho da construção civil no Brasil é de muita baixa qualificação e o lucro que se extrai está muito ligado a essa baixa qualificação. Isso é o oposto do que o Liceu representava”, afirmou o curador.

A mostra também discute sobre o futuro da instituição, com a mudança do trabalho manual para a fabricação digital, com a impressão e modelagem 3D e a Robótica.

A mostra gratuita pode ser visitada até o dia 17 de fevereiro. Mais informações podem ser obtidas no site.

Agência Brasil

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