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AUXÍLIO, FARTURA E INCERTEZA

Foi para alcançar o sonho de cursar enfermagem que Kananda Oliveira, 19, se mudou de Severiano Melo para Mossoró, ambas no Rio Grande do Norte, em 2017. Duas horas de viagem separam o campus da universidade da cidade onde ela nasceu e se criou. Com a pandemia e as aulas presenciais suspensas, Kananda preferiu voltar para sua casa. Sem trabalho fixo, viu no auxílio emergencial a primeira oportunidade de ganhar uma renda “fruto do seu suor e trabalho”. Começou um pequeno negócio virtual, vendendo camisetas femininas. No seu primeiro investimento, conseguiu vender sessenta blusas em menos de um mês e, desde então, tem aumentado os pedidos, e as vendas continuam crescendo.

Machucado pela seca, o município de Severiano Melo tem fontes de renda incertas. A atividade econômica mais importante é a cajucultura – e, quando há chuva, a terra do caju, como é conhecida na região, registra fartura na colheita e aquece sua economia. Os agricultores esperam com ansiedade o período chuvoso dos meses do início do ano e, mais ainda, as chuvas de agosto a outubro, a chamada chuva do caju. Em outubro, a cidade comemora com a tradicional festa do caju, agradecendo pela colheita. Neste ano, apesar da boa época chuvosa, a pandemia não permitiu que a comemoração acontecesse. 

Severiano Melo é uma cidade marcada pelo êxodo populacional. No último censo do IBGE, em 2010, a cidade de Kananda tinha 5.752 habitantes; hoje a estimativa é de 2.088. A explicação para essa redução é a saída da população em busca de estudo, emprego e renda. Mas muita gente mantém o título de eleitor na cidade mesmo depois de se mudar e, com isso, Severiano Melo tem mais eleitores registrados – 6.482 – que habitantes. Pelo mesmo motivo, o número de beneficiários do Programa de Auxílio Emergencial – 2.910 – também supera a população. Há beneficiários que já não vivem na cidade, mas, no programa assistencial, deram como endereço oficial a cidade de Severiano Melo.

Desde abril, o auxílio é como uma redenção em cidades mais pobres, principalmente no Norte e Nordeste, suprindo a queda na renda causada pela paralisação do comércio com a pandemia do novo coronavírus. Um estudo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) notou que o programa teve impacto maior nas localidades que registram um número mais alto de cadastrados através de programas sociais que, normalmente, são cidades mais pobres do Norte e Nordeste. Os estados com maior percentual de adesão ao auxílio em relação ao número de habitantes são Sergipe (66%), Piauí (40%), Bahia (39%), Pará (38%) e Maranhão (38%), segundo dados do Ministério da Cidadania. Todos os estados do Nordeste estão, pelo menos, nas quinze primeiras colocações. Em cinco unidades federativas – São Paulo, Rio Grande do Sul, Distrito Federal, Espírito Santo e Mato Grosso do Sul -, foi notado que o valor destinado pelo auxílio não cobriu a perda de renda.

Ecio Costa, professor de Economia da UFPE e um dos autores da pesquisa, avalia que o programa cumpriu seu papel mas que, ao contrário de um programa de renda mínima, tende a suprir as necessidades em período curto de tempo. “O auxílio foi concebido para atender uma necessidade urgente. É diferente de um programa de renda mínima. O governo federal tem tentado implantar um desses programas no ano que vem, mas isso pode trazer impactos na economia e na estabilidade do país que já está comprometida”, ressalta.

Em Severiano Melo, assim como nos municípios que conseguiram movimentar a economia com o programa, a maioria dos 2.910 favorecidos pelo auxílio se cadastrou por meio dos programas sociais, acumulando os dois rendimentos. Só 573 beneficiários se inscreveram pelo aplicativo. A mãe de Kananda sempre foi dona de casa por causa de uma doença cardíaca e é beneficiária do Bolsa Família, por isso, desde a primeira parcela, as duas foram contempladas. “Só consegui capital para iniciar meu negócio a partir do auxílio, antes disso não imaginava que pudesse abrir uma loja virtual. Ainda mais porque muitas pessoas saem da cidade pela falta de oportunidade e acabam não voltando por achar emprego lá fora”, relata a filha. Se o desemprego de jovens atinge 30% em todo o país, numa cidade pequena com poucos horizontes à vista, a realidade é ainda mais angustiante. Kananda, com seu negócio online de camisetas, por enquanto vai driblando um futuro comum à juventude da cidade: ser sustentada pela família e não chegar à universidade. 

Mônica Alves, professora e proprietária de uma padaria, sempre morou em Severiano Melo. Este ano, viu seu negócio ir na contramão da crise e se expandir. O que antes era apenas uma fábrica de bolachas sem atendimento de balcão, se tornou uma panificadora com fabricação própria de bolos, pães, tortas e as tradicionais bolachas. Em setembro, a professora adquiriu as máquinas e o local de uma padaria que estava fechando, e, para essa vitória, Mônica declara um aliado: o aumento de vendas durante a pandemia. “Não sentimos os reflexos da pandemia no âmbito financeiro, a gente conseguiu dar uma levantada nos nossos negócios. As vendas aumentaram”, conta. Apesar da matéria-prima com alto custo, o auxílio deu uma injeção de ânimo no comércio da cidade. Com dinheiro na mão, cresceu a demanda e, com ela, a oferta.

A população de Severiano percebe a pulverização de novos serviços, dentre eles, delivery de comidas caseiras e lojas online de diversos segmentos. “A autonomia dos profissionais se intensificou, muita gente passou a trabalhar para si mesmo. Principalmente no ramo de alimentação, abrindo lanchonetes em casa mesmo ou vendendo por delivery”, pontua Mônica. 

O futuro, no entanto, gera anseios e incertezas. As parcelas do auxílio estão previstas para acabar em dezembro e o fim já preocupa comerciantes e beneficiários. Com o encerramento do programa, a economia pode demorar ainda mais a se recuperar, como explica Costa: “Certamente o fim do auxílio traz um impacto na recuperação da economia, porque esses recursos nas mãos das pessoas é destinado pro consumo e traz aquela sensação de aquecimento econômico de curto prazo.” Kananda já conseguiu cobrir os investimentos que fez, tem se planejado para continuar a manter o seu negócio mesmo quando a renda do auxílio não for mais uma garantia e espera que os clientes de Severiano permaneçam com o poder de compra. Em contrapartida, sem muito otimismo para janeiro, Mônica anseia que o investimento alto na padaria seja compensado. “Acho que vai dar uma desacelerada. O comércio vai sentir, vai sofrer, sim”, reflete. Entre anseios e inseguranças, a previsão é que a boa safra vivida pelo comércio local inicie 2021 com mau tempo – e não só na terra do caju.

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